quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Charlie, filho de quem?




“A vida é um sonho, Charlie Brown!” [Schulz, 1997]


Que grata surpresa a leitura das tirinhas de Charles Schulz a que tive acesso nos últimos dias. O encantamento com as histórias me fizeram gostar ainda mais dos personagens, especialmente de Charlie Brown, uma projeção quase caricata de mim.


A intenção de Schulz ao criar Charlie, na verdade, era tentar pinçar de sua própria história, no passado vivido na cidade St. Paul, todas as inseguranças vivenciadas pelo eterno criador de Snoopy.


Encerrado o seu labor de cartunista em função do Parkinson que o acometeu, lamentavelmente não temos mais como nos impressionar com tamanha sensibilidade para descrever as melancolias da vida, na roda de amigos criada por Schulz.


Engraçado como essa coisa lúdica de se identificar com personagens infantis às vezes pegam a gente. Desde criança gostava de assistir à turma do Snoopy no SBT, à tarde, no programa de Mara Maravilha. Lembro-me bem que na minha casa a TV era em preto-e-branco, de modo que sequer conseguia visualizar as cores ricas do desenho.


Talvez em razão das minhas dimensões ‘cranianas’ fui apelidado de Charlie Brown por alguns amigos da rua. [Apesar de sacanas, não me dava nos nervos... e, portanto, nada de traumas acumulados por isso! rsrsrs] Algum tempo depois, chegadas as cores à nossa TV, em razão da Copa do Mundo de 1990, nos meus olhos se achou graça ainda maior pelo personagem dono do cão.


Mas Snoopy (rectius: afeto em norueguês) tinha um mundo fantástico. Snoopy era escritor, vacilante na vida amorosa, aventureiro. Ele tinha uma mesa de sinuca, um som e um Van Gogh, tudo de alguma maneira guardado em sua casinha de cachorro.


Charlie, seu dono, de alguma maneira o conquistava dia após dia por todo afeto dedicado ao beagle. No episódio em que seu cão fugiu, logo se permitiu encontrar, numa saga vivida por ele e seu melhor amigo Linus. Por falar em Linus, ninguém instigava tanto Charlie Brown a vencer suas inseguranças quanto o próprio amigo Linus.


Apesar de sua aparência exageradamente infantil e do “paninho azul” que sempre carregava, o amigo punha, na muretinha das reflexões filosóficas mais profundas, Charlie pra pensar... em função do agir necessariamente imediato. E pensar no quê? Pensar em olhar pra fora do encalacrado muro das idéias exculpantes, ora bolas! Afinal, Charlie sofria algumas pilhérias de sua irmã Lucy, que sempre o fazia de ‘trouxa’ quando ia chutar a bola nos jogos de futebol americano e beisebol.


Só que Charlie Brown não tinha muito o que crescer em seu universo interior. Precisava muito mesmo era desenvolver a ‘ética do cuidado’ de que era dotado... e simplesmente ser feliz. Foi assim que conseguiu conquistar a ‘menininha-ruiva’ em face do próprio amigo Linus, com quem disputou seu coração uma dezena de vezes, pelo menos, ao longo dos episódios.


E o que dizer de Márcia? E Petty Pimentinha, que na tradução em português chamava Charlie de ‘Minduim’? Só depois pude observar que as alegorias de Márcia e Pimentinha remetem ao universo gay, pois uma tinha aparência ‘andrógina’ e dominadora. A outra, nitidamente esvaziada de qualquer vaidade, só cumprimentava os amigos com os vocativos ‘Meu’ (na tradução do desenho nos anos 90) ou ‘Senhor’ (na tradução dos DVD’s remasterizados que tenho), na mais sutil alusão ao universo das mulheres pouco femininas.


O desenho era incrível!


Saudoso Charlie Brown... sensível e reto. Choroso quando Linus se mudou de casa, deixando o murinho das lamentações vazio; mas forte e maduro para encontrar os bens perdidos, inclusive seu cão, de quem jamais se separou, por convicção por si e pelo 'malandro snoopy' do amor que os unia.


A par de toda ‘redondeza de cabeça’, a verdade é que a remissão ao passado da vida de Schulz em St. Paul, acrescentou à sua biografia o fato mais curioso e incrível pra mim: o pai dele era barbeiro...


Por essa eu não esperava!!!